Os Reis

Se esta prosa tivesse sido escrita em tempo real enquanto decorria a prestação do New Order em Paredes de Coura, a letra seria tremida, pior que gatafunhos de médico, de tanto que se dançou no festival da pacata vila minhota. Há 14 anos que a banda nascida das cinzas dos Joy Division não atuava em Portugal, tão longe remonta essa sua estreia, esse seu concerto único entre nós. Como a norte nunca o tinha feito (atuara no Parque Tejo, no SBSR) a larga maioria dos presentes mal estava preparada para ouvir hinos eletrónicos como Blue Monday, Bizarre Love Triangle ou True Faith, pujantes mais de 35 anos volvidos desde o seu lançamento como ali se provou.

Secretamente, a multidão de 26 mil pessoas – num dos dias mais concorridos deste Vodafone Paredes de Coura – , até teria a esperança de ver evocados alguns dos temas da banda de Ian Curtis, ali na voz de Bernard Sumner (que mesmo cansado nunca desistiu). Mas estar à espera não é o mesmo que estar preparado. É que passagens como She's Lost Control, Transmission ou Atmosphere carregam em si um dramatismo que nos avassala. Love Will Tear Us Apart, como cantavam seis estarolas numa roda de abraços já muito depois de findo o concerto, encerrou com chave de ouro este que foi um dos três momentos memoráveis da 27ª edição do festival. Seguem-se os outros dois por ordem temporal de apresentação e não por qualquer avaliação qualitativa.

 


A Rainha

Patti Smith é uma amante da “liberdade, igualdade, fraternidade”. Defende mesmo que “o povo é quem mais ordena” e por isso é estranho que tenha sido o único artista, nos mais de 50 convocados para o festival, a exigir restrições quanto a número de fotógrafos acreditados, e logo ela que também é fotógrafa. A caminho dos 73 anos, a escritora/poetisa, percursora do movimento punk no feminino, é uma banshee de longos cabelos brancos, dona de um repertório “bigger than life”, a sua e as nossas, e que tanto diz a tantas gerações de sonhadores inconformados. Smith não emocionou só: deixou-se emocionar. “É difícil despedir-me, tão forte foi a energia e o entusiasmo. As pessoas cantando Ghost Dance e People Have the Power fizeram-me chorar”, escreveria na sua conta oficial no Instagram.

 

Suede 4802


Os Príncipes

Há precisamente 20 anos, os Suede encerraram o segundo dia de música em Coura. Neste fim de semana, foi deles o último suspiro no palco principal. Ao longo de quase duas horas a multidão sentiu-se em levitação, logo ceifada do chão pela energia esguia de Brett Anderson e o seu timbre angélico-demoníaco, em tudo igual ao que ouvimos nos discos, em tudo igual ao que lhe ouvimos há mais de duas décadas.

Os Suede, de tanto e tão bom repertório que possuem, nunca poderiam assinar um mau concerto. Acontece que em Paredes de Coura ofereceram-nos um dos melhores do cartaz e o mais arrebatador que já deram a provar em Portugal. Foi sauna, foi aeróbica, foi meditação e pilates. Foi escalada e rapel, tango e bolero. Foi um salto mortal encarpado, um golpe de ippon como no judo. Foi missa e pop, Shakespeare e tragédia grega, com Brett tanto a espojar-se no chão, belo mas não vencido, como recuperando à viola sozinho faixas do seu álbum homónimo, registo editado há 26 anos e uma das melhores estreias discográficas de todos os tempos. ‘So Young’ que está Anderson, ainda que prestes a fazer 52 anos, vestindo e despindo canções e a nós por arrasto. E assim se fica com a boca cheia de pó e de paz.

 

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Emoções a repetir e outras de fugir

Coube “aos tugas” Bed Legs as honras de abertura no Palco Vodafone (o principal) desta 27ª edição do festival. A sua entrega rock’n’roll/blues encantou aqueles que, neste ano de sol e muita mornice na praia fluvial do Taboão e afins (felizmente que só choveu na madrugada após o encerramento do festival), já tinham tratado a tempo do tríptico viagem-alojamento-pulseira.

Este festival foi de novo pródigo em apresentar-nos ao vivo projetos que merecem ser explorados mais atentamente, tanto em disco como em palco. Na ala doçura-de-gatinha-mas-sem falinhas-mansas, destaque para Julia Jackson, Stella Donnelly e Alice Phoebe Lou, as duas últimas no Palco Vodafone.fm. Já no setor apetecia-era-ouvir-ali-ao-lado-ou-a-outra-hora alinharam Boy Pablo (que deviam ter tocado no palco principal em troca das mornas Alvvays), os Capitão Fausto (que sendo pouco experientes em grandes arenas ainda tiveram de carregar a cruz de atuar depois dos magníficos New Order, já com a multidão em debandada) e os Khruangbin (que deviam ter servido o seu groove funk por la noche e não logo às 18h15).

 

 

Se assim tivesse sido, também a eles teria acontecido uma noite inesquecível a exemplo da que viveram e deram a viver os Parcels na primeira das 4 noites de música. “Não há palavras para descrever o que aconteceu a noite passada. Um momento que ficará para a história dos Parcels”, comentaria no Instagram a banda australiana, repetente no Couraíso mas agora mais segura de si e contagiante.e deviam ter tocado no palco principal em troca das mornas Alvvays), os Capitão Fausto (que sendo pouco experientes em grandes arenas ainda tiveram de carregar a cruz de atuar depois dos magníficos New Order, já com a multidão em debandada) e os Khruangbin (que deviam ter servido o seu groove funk por la noche e não logo às 18h15).

Também Father John Misty, cabeça de cartaz do terceiro dia, já pisara aquele palco mítico. Então, a sua performance desarmou o público. Mas desta feita, apesar de competente, e das suas letras e voz folk continuarem a emocionar até à medula quem lhes presta atenção, Josh Tillman não esteve tão magnético em palco, tão possuído, tão tudo, como é seu costume. A contenção fica-lhe mal, sobretudo depois do poderoso que foi o concerto dos Spiritualized.

 

Father John Misty 4101

 

Perante a fusão de um coro de três vozes gospel com o space rock da banda de Jason Pierce só não viu aurora boreais quem não quis. Algumas passagens chegaram mesmo a ser arrebatadoras neste concerto de contemplação onde não se trocou uma única palavra com a assistência. "Oh, Happy Day" encerrou esta atuação, tão nos antípodas da sensação deixada pelos cabeças de cartaz do dia inaugural em Paredes de Coura.

 

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É que os norte-americanos The National protagonizaram um concerto sofrível, com mau som em termos técnicos e uma lastimável prestação vocal de Matt Berninger. Pena, sobretudo para quem assistira ali à sua doce estreia nacional, corria o ano de 2005. Agora, quando 8 em cada 10 pessoas ali presentes saiu do recinto com a ideia que já viu tudo o que a banda tem para lhe oferecer, não é propriamente positivo. Vejamos se em dezembro, no Campo Pequeno, regressam mais… hidratados.

 

The National 2608

 

O maior erro de casting nesta edição foi, no entanto, Freddie Gibbs (acompanhado de Madlib). Para a maioria dos festivaleiros foi tempo de tratar de burocracias como comer, ir ao wc , encontrar amigos, ruminar o concerto de Patti Smith e fazer técnicas de respiração para mergulhar em Suede. “F*ck police”, disse Gibbs mais de 37 vezes, a sua idade, por sinal. E não é que, de repente, senti-me num festival bem mais a sul ainda que regado com a mesma marca de cerveja?!? “F*ck”, dizemos nós, que o rap agressivo deste norte-americano não combina com o amor que é este Couraíso.

 

Eventos paralelos

Como não só de música se faz o festival, além dos aclamados concertos, não faltaram as sessões de leitura – Vodafone Vozes da Escrita. No Palco Jazz na Relva, Inês Maria Meneses e Rui Reininho partilharam textos de autores que admiram e trocaram uma intensa conversa sobre o amor e, na segunda sessão, a dupla Márcia e Valter Hugo Mãe juntaram canções acústicas à poesia recitada, numa cumplicidade tão característica de dois amigos de longa data. 

Outro dos ativos incontornáveis do festival são as Vodafone Music Sessions, que de novo proporcionaram concertos intimistas em localizações tão inusitadas como um sanatório ou um Centro de Educação e Interpretação Ambiental. Este ano, as bandas que protagonizaram estes momentos especiais foram os Boogarins, Avi Buffalo, Capitão Fausto e Time For T.

(Fotos: Graziela Costa).